terça-feira, 10 de março de 2009

A vulva encantada do marajoassu

Depois da visita e reunião com as pessoas em Soure, percebi observando também a população, várias marcas do passado da opressão branca contra os caboclos na fala de um fazendeiro falido que queria nos alugar uma casa muito pequena por um valor sobrenatural, ele dizia sinicamente “só não alugo pra este povinho daqui, aqui ninguém presta. Faço um preço especial pra vocês que são de Belém”, e dizia isto como se não estivesse presente um idoso que trabalha pra ele, negro e nativo.
Outro ponto importante que observei foi a mobilização das mulheres, na reunião da prefeitura, eram a maioria, com olhares blasé e bases posturais afirmativas, do mesmo jeito vão à escola, carregam os filhos, falam com o marido detido (“trago cigarros? Amanhã não posso trazer comida...”), escrevendo poesias, enfim, nas terras marajoaras onde a história oficial registra um mundo de pescadores e vaqueiros há um cenário real de mulheres em ação com altivo poder de transformação.
Visualizei no campo do cruzeirinho centenas de mulheres tecendo uma gigantesca rede azul com teares manuais de bilros dourados debaixo daquele sol escaldante do meio dia. De noite, quando chovia havia muito fogo na rua da casa do vaqueiro Juvêncio onde outros vaqueiros trajavam ternos velhos e mofados, os pés descalços cada um, em fileira montavam búfalos feridos e cansados eram liderados por aquele velhinho de face enrugada e doce com a blusa alvinha cerzida de linha preta nos remendos até que as chuvas se avolumaram madrugada adentro inundando tudo, todos aqueles vaqueiros morriam afogados, as cabeças bubalinas com as bocas abertas pra fora d água pediam um socorro mudo enquanto atrapalhavam um grupo de turistas estrangeiros que procuravam os campos com seus digitais nstrumentos fotográficos, ávidos e loucos, queriam as fazendas. Sobre a água, crianças roxinhas-roxinhas, cacos de cerâmicas, canoas estilhaçadas, repteis, garrafas pets e pássaros mortos excrementos e flores.
Tudo afundando, virando limo no fundo do rio, e a cobra grande do paracauari observando de longe.
Estando no Marajó, quero falar com os velhos, ouvir os causos, tatear na fala antiga das pessoas os efeitos simbólicos da tal crise. Mas o que é a crise? Pra onde vai tudo que a água leva? Aquela mulher ao lado daquela delegacia faz oque da sua dor de solidão quando a noite esfria? Quando a grande maré seca como é que ela devolve tudo que engoliu? Os símbolos arquetípicos gravados na milenar arte do povo marajoara permitem supor que algum tipo de ritual em honra a uma grande deusa teve lugar na boca do rio Amazonas, antes da colonização européia
[1]. Uma misteriosa estatueta feminina de 30 centímetros parece ter tido um papel central nos rituais.
A tal estatueta, denominada pela estudiosa de “senhora das águas” apresenta o corpo faloforme, mas também em formato de peixe coberto por espirais vermelhas, pretas e brancas indicando o processo regenerador as águas. Um duplo portal circunda a vulva, que abre para uma dimensão desconhecida no interior da deusa, talvez uma passagem para a vida após a morte, comparando com outros símbolos.
A estatueta encontrada num local de cemitério data de cerca de 400 a.C. até 1300 d.C. (período q viveu ali a civilização marajoara Foi ela a construtora das centenas de aterros nas planícies alagáveis, transformando a paisagem da parte oriental da maior ilha flúvio-marítima do planeta. Sem instrumentos de ferro, sem roda, apenas com a força física e a vontade determinada).
Imagine que cada mulher e homem nobre da raça marajoara fazia um vôo após a morte nas asas da Coruja ancestral, hoje em dia a galera precisa usar ácido pra conseguir essas coisas.
Uma jornada nos espaços da noite, no fundo do aterro cemitério, agasalhados no
bojo da urna Coruja. A morte transformadora.
Acreditariam na volta dos mortos sob a forma de outro ser? As urnas de um metro de altura estão cobertas com símbolos de transformação, são verdadeiros “livros dos mortos” em ideogramas. Os símbolos arquetípicos marcaram os momentos decisivos do ciclo da vida-morte-vida para esses indígenas que recriaram a paisagem numa espécie de geografia xamânica.
Formados pelas chuvas abundantes que começam em dezembro, vastos lagos superficiais recobrem feito lençóis a planície oriental da ilha de Marajó durante seis meses ao ano, em média. São os braços líquidos e piscosos da Senhora das Águas envolvendo a terra e seus filhos, talvez venha daí a altivez da mulher marajoara de hoje, em busca do novo, do poder transformador gerado pela vulva da senhora das águas com seu duplo portal da transformação humana.
Mas se formos buscar simbologias nesta estatueta, ela nos dirá muito mais do que isto, inclusive aquilo que nem imaginamos que existe, a arte marajoara pré-histórica é um registro rude e belo feito no barro dos símbolos e das fórmulas de poder usados durante os rituais. As tangas femininas e os falos de cerâmica finamente ornamentados são alusões ao drama da recriação do mundo através da dança.
Bem, ela tem o formato aproximado de peixe, em outras culturas, podemos identificar o peixe como um símbolo bastante antigo do mistério da fecundação.“Parece que foi, inclusive, um símbolo da alma”, aponta Jung (1976, par.112). Um animal que mostra uma face sublime, tendo sido objeto de culto religioso na Síria, na Fenícia, no Egito. O papel que o peixe representa na tradição judaico-cristã teria começado justamente nessas antigas devoções.
Para um povo que se desenvolveu em torno do regime das águas, tendo que resistir e se adaptar ao temperamento da natureza com a força das águas, não é de se estranhar que suas crenças se originem dos seres aquáticos, hoje as águas é que nos levam até a terra sagrada do Marajó, águas são uma fonte inesgotável de riquezas sensações, fantasias e sonhos.
Estão associadas às emoções que, esquentando o corpo, intensificam os ritmos internos em ondas de intensidade variada, tanto na troca sexual quanto na briga de rivais. As marés sobem e descem, obedecendo aos ciclos lunares. Diz-se que a água é feminina. Ela flui e reflui, afirma e nega, condição pela qual mulheres e marés, assemelhadas, compartilham igual desconfiança masculina.
A água doce é mãe de mitologias, imagens de repouso e devaneio, interpreta Gaston Bachelard (1985). Enquanto o mar sensibiliza a pele com a aspereza do sal, arde nos olhos, queima como o sol, a água dos rios é suave. Permite um privilégio de banho, desejada, ansiada pelos caminhantes longe de casa. Nisso também, a fonte, o riacho, qualquer manancial de água doce se aproxima do simbolismo feminino idealizado, porque acolhe, nutre,regenera um sofrimento.
A visão unitária de mundo enquanto um todo orgânico que fundamentou a passagem dos antigos marajoaras resistiu a todos os grandes cortes políticos que aquela cultura sofreu com a colonização, com a exploração da terra na pecuária extensiva e com a globalização, ainda se fala nas lendas com seres aquáticos, mesmo que muita coisa tenha se perdido, mesmo que ainda persistam os usurpadores culturais, a Deusa senhora das águas ainda protege seus filhos com o poder da vulva regeneradora, por hora, há muito o que ouvir do povo marajoara até conhecermos o segredo histórico da resistência marajoara.
© ISABELA DO LAGO




[1] A Senhora das Águas na Amazônia
Lucy Coelho Penna, Ph.D. *
(Revista Junguiana Publicaçãoda Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Nº 18:2000, pág. 18 – 29.)




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