sexta-feira, 9 de julho de 2010

O MARAJÓ - Capítulo 34 (DALCÍDIO JURANDIR)

O MARAJÓ - Capítulo 34 (DALCÍDIO JURANDIR)

“Nhá Leonardina cinge o corpo com a faixa, invoca baixinho o caruana e corre em direção ao lago.
Anda pelo campo, apanha flor de batatarana, ouvi o grito do sapo apanhado pela cobra e o olha fixamente o gado. A pajé sentou à beira do lago, as mãos murchas e trêmulas, a voz tão cansada.
À noite Orminda encontra a Nhá Leonardina no chão, brincando feito criança, cantando baixinho:
Atin-nan-nan
Dinlindandan
A pajé perdia o poder da invocação. Aquelas palavras não tinham mais significação para o caruana com quem a velha Leonardina tivera uma vivência tão longa e tão misteriosa. E em vão Orminda tentava levantá-la e conduzi-la para a barraca.
Aeuals palavras, queixa ou súplica, onde o poder das palavras? Quem cortou a língua de feiticeira que os donos do mundo temiam?
Corria ao longo da praia. Perdeu a voz, perdeu a memória dos encantamentos, o fumo do cachimbo perdeu o dom do mistério. Para onde o fumo que enche as almas, acompanha os destino, embalsamo os feitiços, ronda em torno das sessões da meia-noite, puxa dos poços e dos lagos as vozes da vidência? Onde estás, Cavalo Marinho? Onde perdi meu corpo bonito, mais bonito que o de Orminda? Por que dei meu corpo para a pororoca, por que perdi, bichos do fundo, a minha força de enfeitiçar e de fechar os corpos contra o alheio enfeitiçamento?
Só era a simples lembrança da toada:
Mureruereua
Atin-nan-nan
Os pescadores estendiam as largas redes de lanceação em pleno lago. Dentro d’água cercavam os peixes como vaqueiros na malhada. Seus gritos significavam que a safra da lanceação era compensadora. A noite clara parecia inimiga dos peixes e do lago.
Os caruanas não voltavam. Nhá Leonardina olhava o céu, as águas e tremia. As redes avançaram sobre o cardume dos peixes. O vento aumentou, Os campos caminhavam sem fim com a marcha das estrelas.
Com a ponta da faixa arrastando no chão, as mãos apalpando a sombra, a feiticeira corria, os cabelos espalhando-se na noite, como o vento e as vozes dos pescadores.
O lago a endoidecia. Orminda pedia socorro. Na boca do lago, junto a um bote encalhado na lama, três pescadores bebiam, silenciosamente. Não escutavam os pescadores do lago, os bacuraus, nem o grito de socorro de Orminda.
Nhá Leonardina estacou. Caiu na terra, principiou a brincar com imaginária sbruxas, canou um acalanto. Desaparece o Cavalo Marinho, o cachimbo, o reino da feitiçaria. Em seus olhos, em sua voz, em seus gestos o ar da infância que voltava. Suas lagrimas caíam lentas pela faixa e pelas coxas sujas de terra. Esse acalanto Orminda desconhecia. Vinha da infância cheia de verme, solitária, vivida num jirau sobre a lama onde as cobras deslizavam.”


© DALCÍDIO JURANDIR
O MARAJÓ - Capítulo 34

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