É, paresque, o fim da estória das sesmarias do finado barão dos Contemplados. A decadência do latifúndio dos gados do vento (grande evento colonizador) diante da praga metafísica do fantástico Boi Selado mandado pelos pajés vingar o formídável prejuízo dos gados do rio: a compensação de enganados bisavós indígenas no escambo das mal feitorias dos brancos safados. Último suspiro do lero lero dos nobres representantes das capitanias hereditárias em nome do povo; abestado em nheengatu pra rezar em latim ladino desde menino (orai pro nobis, patrão; mas porém a gente não queremos bis...).
Pura coincidência de bondades sociambientais com trovoadas e enchentes da mudança climática, a dramática crise financeira e o nenhenhém global? Deixa de besteira, está gente. Vê se enxerga a dura consequência da evolução política do fim do mundo em anos e anos de luta bruta, desde sempre, quando o primitivo tapuia rabiscou os primeiros símbolos do sol e da lua em riba da pedra nua pintada a primeira vez até a primeira manhã da democracia nas Américas do Sol. Olha lá, como isto vai ficando bacana e se alastrando pelas margens da História para os centros!
No extremo Norte convém saber do centenário da morte do fluminense amazônico Euclides da Cunha (demarcador da fronteira amazônica com o Peru, profeta do despertar da Bolívia e visionário da integração bolivariana, repórter inigualável dos Sertões nordestinos e dos destinos da brava gente brasileira); no extremo Sul não deve passar em brancas nuvens o centenário de nascimento do marajoara carioca Dalcídio Jurandir... Duas grandes vidas e mortes brasileiras que se entrelaçam no descobrimento profundo dos Brasis. Coisas do realismo mágico no país da cobra grande Norato, tirada do fundo do rio junto com Macunaíma extraída do mito taurepã para o cimo da literatura nacional, aquela pelo gaúcho convertido amazônida Raul Bopp e esta pelo nômade paulistano que se chamou Mário de Andrade: não é pra menos, por exemplo, que Dalcídio tenha ido ao Rio Grande do Sul botar em letras de forma o romance proletário "Linha do Parque" e se asilado no Rio para estar mais perto do Marajó que se perdia entre chuvas e esquecimento...
Falta agora evocar outro Mário, doutor e professor de vilas dos confins e chapadões dos bugres. O quixote das águas amazônicas em sua nau incrível, que nem regatão de artes e ofícios, com piano e biblioteca rio acima e rio abaixo que nem Noé a salvar plantas e bichos em extinção e a humanidade em perigo no dilúvio do analfabetismo politico planetário. É mole? Então só te digo, vai!... Enfim, evocar o grande mago Rosa de "Grande Sertão: Veredas", convidar para o encontro dos povos das água o amado filho da Bahia, mestre Graciliano e suas vidas secas, Érico Veríssimo a fazer, deveras, turismo literário responsável de norte a sul... Eta Brasilzão! Zão, zão. Se o vasto mundo de Drummond tem rima rica mas não há solução, a fátria brasileira faz a sua integração de norte a sul. Do Oiapoque ao Chuí é a hora e a vez do povo das águas mandar o mundo ver o peixe e tomar açaí.
Com Lula lá no Planalto e cá na planície a força-tarefa do patrimônio da União em parceria ativa com municípios, igrejas e associações locais a levar reconhecimento oficial a tantas famílias ribeirinhas em seu direito tradicional de posse, nos termos da Constituição Federal, pela primeira vez efetivada, desde 1988. Vão os bravos e desconhecidos servidores do Brasil sociambiental e voluntários (recrutados dentre o mesmo povo ao qual eles servem com fervor) a prestar difícil e complexo serviço público, vencendo o medo pelas margens da história, rompendo o estado de abandono crônico de localidades isoladas e extremamente afastadas das sedes de municípios. Lá onde canta a saracura a denunciar na noite escura, na quebrada da maré, o mísero IDH da gente. Somos algo perto de 500 mil brasileiros e brasileiras, muitos dos quais pode-se ver pela cara a origem indígena ainda fresca à flor da pela morena.
"Regularização fundiária" é o código chave que abre a porta ao desenvolvimento socioambiental sustentável desta numerosa gente. Daí seguirá o manejo comunitário e a educação com responsabilidade social para promoção da economia solidária. Ação estratégica em parceria público-privada que corrige a grande injustiça de 350 anos, praticada contra os direitos ancestrais das populações tradicionais amazônicas. Aquele triste fato histórico da atraiçoada e esquecida pacificação da ilha do Marajó, no ano de 1659.
O singular acordo de paz entre índios e colonizadores do Grão Pará, ocorrido no rio dos Mapuá (hoje reserva extrativista florestal de Mapuá, no município de Breves-PA), primeiro passo efetivo da posse lusobrasileira do hinterland na construção do uti possidetis real. A que fora manifestada originalmente com a entrada de conquista do rio das Amazonas, por Pedro Teixeira, em viagem de Belém a Quito, Equador (1637-1639). Direito reconhecido pela Espanha, no tratado de Madri de 1750. Com o qual se encerrou o longo conflito armado (1623-1659) iniciado pela União Ibérica (1580) e terminado com a independência de Portugal (1640), entre portugueses aliados aos tupinambás, de uma parte; e índios nheengaíbas parceiros de holandeses e ingleses, de outra.
Os antigos marajoaras foram dura e injustamente castigados durante a expulsão dos estrangeiros do Xingu e Baixo Amazonas. Por fim, coloniais lusos tentaram por todos meios ocupar as ilhas sem sucesso. Até que o payaçu dos índios, padre Antônio Vieira, conseguiu finalmente por meios pacíficos o que as armas nunca conseguiram. A fim de evitar a "guerra justa" de extermínio e cativeiro contra os rebeldes Nheengaíbas, requerida pela Câmara de Belém e autorizada por Lisboa ao governador do Maranhão e Grão Pará, André Vidal de Negreiros: guerra injusta e impossivel de vencer sem risco de perder Belém do Pará (já fragilizada e em declínio por falta de recursos), diante da feroz resistência de numerosas nações indígenas contrárias, prontas a pedir ajuda militar à colônia holandesa nas Guianas e Caribe.
Longe dos senhores da colônia amazônica agradecer ao empenho dos padres e tirocínio dos caciques do Marajó, hostilizaram mais ainda a uns e aos outros, pois queriam "negros da terra" e não súditos leais e valentes. Aqueles brutos coloniais, também bisavós dos cabocos, ofuscaram o "sui generis" acontecimento que antecipou a teologia da libertação na Amazõnia, séculos antes. Que, fizeram então? Primeiro, expulsaram os padres subversivos (1661) a pontapés, depois o sucessor de dom João IV, desdenhando a missão de paz e repudiando o acordo entre os caciques e o padre grande; nos termos da lei de liberdade dos índios e tutela dos mesmos pelos jesuítas, datada em Lisboa a 9 de abril de 1655; o rei filho deu o dito do rei pai por não dito. Deixou índios livres ser capturados como animais e transformados em escravos.
O fraco monarca, incapaz até de consumar o próprio casamento e defender o trono afinal desposado pelo irmão Pedro que o despojaria também da rainha; ainda teve ânimo para deixar os marajós despossuídos e doar a ilha a seu secretário lisboeta para virtual criação da capitania hereditária da Ilha Grande de Joanes [Marajó], ano de 1655. Por que entra aqui esta feia história? Para explicar a razão histórica da miséria humana dos povos das águas na rica Amazônia da biodiversidade. Saber que, refazendo a História, cerca de 23 mil famílias já foram atendidas pelo projeto Nossa Várzea para receber o documento oficial de uso de áreas de várzea. Que Medida Provisória para agilizar a regularização fundiária vai acelerar o processo. Portanto, a vez e a hora das populações tradicionais sinaliza para o País, como disse o padre Vieira em carta a El Rei após as pazes dos nheengaíbas; fica a Amazônia em paz e mais seguro o Brasil.
Belém do Pará, 15/02/2009
© José Varella – Caboco Marajoara
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