sexta-feira, 17 de abril de 2009

Uma pequena fala sobre a viagem a Soure- Marajó

Disse Stanislavski que “quanto mais ampla for sua memória emocional, mais rico será seu material para a criatividade interior”. 

Creio que isto dispensa maiores explicações, a educação dos sentidos, das sensações, então, do todo perceptivo é a efetivação de todo trabalho em arte, pude perceber na ultima viagem a Soure que estou me reprocessando, re-conhecendo o Marajó que eu achei que conhecia porque fui acostumada a viver maravilhosas férias naquele lugar desde criança, hoje estou indo a trabalho e sou outra criança, ainda sendo a mesma.

Já que a incumbência é de fazer um relatório, então vou proceder com minha memória afetiva, mesmo que ela não obedeça ao tempo cronológico dos acontecimentos, prometo, portanto, nem usar as anotações da agenda.

É importante, de início registrar e criticar a tormentosa viagem de balsa, chegar de madrugada em Icoaraci foi a única coisa boa, tomamos café com tapioquinha num ambulante defronte a ruína da antiga residência (em ruínas) do poeta Tavernard, e depois eu e André tivemos de empurrar o carro para entrar na balsa, a pobre máquina já deu prego antes mesmo de sair de Belém, depois lá em cima, empilhados esperamos cerca de uma hora e a balsa não saía, disse-me um tripulante que esperavam por umas pessoas do GOVERNO que estavam atrasadas, o governo sempre perde a hora. Então foram quatro longas horas de sono impossível em assentos muito desconfortáveis e apertados, não podíamos descer e ir até o carro e não podíamos fazer quase nada naquele estábulo onde armazenam as pessoas de maneira simétrica, tremida (a balsa é velha e se treme toda) e estúpida.

Depois de passar por Salvaterra e providenciar logo um frete para a mudança com fogão, camas e mesa, chegou a hora de limpar e arrumar a casa, me adiantei logo com vassoura, água e sabão, estava ansiosa pelo descanso, mas não podia parar, Rômulo constatou que não havia sequer um armador de rede na casa inteira e tratou de improvisar com arames farpados, tive medo da engenhoca, mas afinal, tínhamos camas, e ele garantiu que suporta até 100 quilos. Isto levou o dia inteiro e no final da tarde caiu uma chuva pesada que levou a noite inteira, o tempo esfriou muito, e quando a faxina acabou, André e Rômulo conversavam sobre o trabalho, possibilidades criativas e técnicas de articulação com os participantes, me enfiei na conversa indagando sobre a tal didática, descobrimos que entre, café, cachaça, redes e chuva, havíamos começado o seminário, e nesta primeira etapa, mesmo sem a presença do colega Chiquinho, que ficou adoentado em Belém, falamos sobre relações perceptivas entre música e imagem, e seu papel no “filme coletivo”, mas como desejar tanto de um processo de ensino-aprendizado da arte num campo tão aberto? E os possíveis choques entre concepções de criação artística tão diferentes entre nós e os participantes de Soure, e mesmo entre nós e nós mesmos? Que posturas adotar para não parecermos professores e alunos? Mas somos professores? Devemos chamar os participantes de alunos? O filme coletivo é um produto em processo ou um almejado produto cultural? Somos arte-educadores, oficineiros ou artistas a socializar nosso trabalho? Ou seres extra-terrestres?

Confesso que os meninos iam falando da oficina deles (que é musical) e eu ia fazendo os questionamentos. Porque acredito que precisamos nos provocar a dialética para lançar um olhar crítico diante do atual conceito de oficina que vem sendo difundido no mercado educacional/cultural que chama de oficina de arte aquela oficina de coisa pronta e acabada com a etiqueta de “feito à mão”, onde não há nenhuma preocupação com as razões estéticas dos alunos, que neste tipo de proposta recebem mesmo o nome de aluno obedecendo o sentido literal da palavra, que quer dizer “sem luz”, mas aqui no Corredor Polonês já dissemos que todo mundo “é uma estrela que acende e apaga” nos tempos do Bonde Andando, então estamos fazendo uma oficina de construção de instrumentos percussivos a partir da reutilização de resíduos visuais, sonoros e sólidos, ou estamos fazendo uma oficina de construção de tambor com garrafa-pet?

 Então não podemos ter “alunos”, nem podemos nos submeter a trabalhar em oficinas de arte porque não podemos iniciar um trabalho com um “produto final” em mente, nem podemos nos colocar como professores como a gente vêm fazendo, porque não estamos no âmbito da educação quadrática e pedagogizante da escola, estamos trabalhando na construção de um filme coletivo no Marajó e temos o compromisso de trocar experiência, de aceitar e também questionar valores e atitudes de cidadãos marajoaras, e, portanto, de provocar e ser provocados na agonia, febre e delícia da fruição artística.

Deste diálogo acalorado e muito cansativo ficou a proposta de repensarmos as bases epistemológicas deste fazer, considerando o direito previsto, inclusive, por lei de todo ser humano ter acesso aos códigos artísticos e culturais e expressar-se livremente por meio deles, e de que dentre muitas outras coisas, estamos entrando nesta batalha pela efetivação deste direito. Então, grifo aqui, que não devemos nos esquecer de pensar e levar adiante este diálogo para que não tenhamos mais crises de identidade com nosso trabalho, precisamos nos posicionar firmemente mesmo entre as situações cambiantes típicas do é conforme marajoara e também da natureza do processo de criação artística.

No mais, outra coisa é importante registrar : este é um projeto de RESIDÊNCIA ARTÍSTICA EM PONTO DE CULTURA, a residência artística já acontece, mas e o ponto de cultura que firmou acordo conosco aonde foi parar? Estamos trabalhando dobrado, o ponto em Soure é ilusão fria de papéis e falácias, não temos apoio nenhum, e inclusive, nunca vimos o ponto de cultura ou o público que ele trabalha, que dirá residenciar nisto, mas já tivemos contato  e longas conversas com três gestoras em outras ocasiões. Mas nesta última passagem por Soure, uma delas passou por nós e não reconheceu (?), outra por telefone, não lembrava de nenhum projeto de filme (?), e a coordenadora não pôde nos receber porque estava sempre em reunião(mesmo no feriado), e olha que passamos sete dias em Soure, mas o pior mesmo é saber que esta última tem de assinar os papeis pra Funarte .

De toda forma, a missão desta viagem foi inteiramente cumprida, ocupamos a casa, divulgamos o projeto no CRAS, nas escolas públicas de ensino médio e EJA, na RESEX, que acumula trabalho com 17 associações e o mais importante: depois de praticamente pedir de joelhos, já temos um local e data para iniciar o trabalho no mês que vem, a isso agradeço ao atencioso secretário de turismo, esporte e cultura de Soure, que foi quem firmou esta importante parceria conosco. Foi bom mesmo no segundo dia de trabalho, entrar em estabelecimentos comerciais e escolas, e ser chamada na rua por  algumas pessoas  que queriam saber “como é que faz para participar do filme?” Isto me deu medo e satisfação, ou qualquer sensação similar a de ouvir o toque do tambor de mina ao longe, ou algo tipo surpresa e frio na boca do estômago.

No mais, os carrapatos e aranhas caranguejeiras invadiram nosso “aparelho” e a próxima imediata missão será envenená-los.

Até breve,

            Isabela do Lago

 

 

 

 

quinta-feira, 2 de abril de 2009

pensamentos da OCCAsião


Pensando sobre a luta deste projeto, e no deleite de outros, ainda poucos braços em uma construção grande a ser erguida, muitos aspectos ainda obscuros, os rumos que se apresentam parecem favoráveis, mas a cultura enquanto produto é o mais cruel de todos.

Educação e cultura são dois conceitos que certamente precisam ser focalizados para abrir este diálogo, apesar de atualmente serem tratadas de forma dicotômica, como as políticas públicas vêm tratando esses dois temas.

Até mesmo no que tange à alocação em Ministérios no Governo Brasileiro, pois temos um Ministério da Educação e um Ministério da Cultura.
Sabemos bem que qualquer análise que façamos do conceito de educação remeterá, inevitavelmente, a nosso ver, ao conceito de cultura, então porque esquadrinhar tanto?
Há correntes pedagógicas que concebem a educação como instância de preparação para a ocupação de papéis pré-definidos pela sociedade, outras que objetivam a formação do indivíduo como “ser” ideal, outras que pretendem formar cidadãos e alcançar a transformação social. Inevitavelmente, em todas elas, está em questão a formação de um homem que, como ser social, está integrado a uma sociedade, a uma cultura, a um momento histórico.
Relembramos, aqui, palavras de Paulo Freire (1996), quando afirma que uma das tarefas
mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos ensaiem a experiência profunda de assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, etc.
Na concepção de Paulo Freire, como na de inúmeros educadores que militam na área de
Educação, como eu, percemos que nas três últimas décadas, a questão da identidade cultural é problema que não pode ser desprezado, nem na formação dos professores, nem na prática educativa, tanto que, num esforço de contemplar, os PCNs colocam a questão enquanto valores transversais ao ensino da disciplina, mas ninguém pensa a educação informal da arte, porque a da escola está cada vez pior, com separação em linguagens, então, coitados dos professores com formação em dança, teatro ou música, porque na escola, só querem saber do Da Vinci e do Tangran, dificilmente se pensa a origem do aluno, é porque, na escola é mesmo aluno o *sem luz, mas no Campo aberto, estão dando azas a projetos, que contrata oficineiros, ou arte-educador, e considera a vivência prática, paga menos e nem precisa se preocupar com esse povo que é formado em arte, mas, que compreensão didático-pedagógica tem o instrutor de capoeira, quem está dando formação pra esse pessoal? Será que tem o "arte-educador", por acaso um termo já problemático, será que é correto pensarmos a educação no campo aberto como uma prática de menor valor que a da escola? Sim porque a escola quer o prodessor de nível superior, e as oficinas de arte são dadas por diletantes, e o tal prática crítico-educativa, se a moda da oficina é só pra reproduzir procedimentos técnicos, então conseguimos voltar no tempo, e estamos revivendo a educação artística do regime militar.

Ôpa, desculpem, mas acreditei que esta máquina do tempo andava pra frente, oque pode ter de tão interessante nos moldes da educação do regime que nos faz voltar atrás agora? Será o "calem-se", ou ornamentar paredes e divertir a massa?
Cabe então perguntar: É possível pensar educação em uma perspectiva distante da história de um povo, e assim, dissociada da cultura? Que conceito de cultura pode levar a uma separação do conceito de educação?
O conceito de cultura, abrangendo o conjunto de valores, de manifestações materiais e
imateriais produzidas em sociedade, obviamente inclui a educação, esta entendida como o processo pelo qual as sociedades geram conhecimento crítico e inculcam seus valores, os criticam ou criam novos valores.
Se pensamos em políticas públicas e em educação como uma instância da formação do indivíduo e da cidadania, e se considerarmos a visão mercadológica que permeia o fomento à cultura, a responsabilidade social, o papel da escola e o papel da sociedade civil organizada, certamente temos alguns problemas a enfrentar, neste sentido, vale questionarmos como captar verbas adequadas para a educação, na rede regular, fora do âmbito da concepção mercadológica que prolifera na sociedade?
Políticas públicas envolvem planejamento, definição de objetivos sociais, de concepções filosóficas, etc. Como proceder dessa forma, no âmbito de verbas destinadas á cultura, de forma ampla e difusa, no âmbito de uma visão de mercado que, se não é a do MINC, é de grande parte da sociedade?
Como pensar a cultura na educação, se não vislumbramos a carga poética que cada pessoa carrega nas costas, sem pensar o embate, sem pensar no outro, sem acreditar que há algo a mais no mundo além de tua maldita vivência, como se a tua vivência nunca tivesse dependido de outrém?

Como disse o poeta... "a vida aberta como um grande circo", esqueci o nome do poeta. desculpem.

Isabela do Lago


Foto: Rômulo Queiroz - capela em Nascimento-Marajó.