DIÁRIO DE BORDO
... SOURE, SEGUNDA, 4 DE MAIO DE 2009
© Francisco Weyl
... SOURE, SEGUNDA, 4 DE MAIO DE 2009
© Francisco Weyl
"O dia de hoje é o primeiro passo da nossa História – o primeiro magnífico quadro artístico cinematográfico – a primeira “tomada” (cultural) oficial, adentro deste ciclo que é a incerteza.
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(... thesce, thesce, thesce, thesce, thesce, thesce, thesce – é assim que o homem da casa ao lado chama o seu porco…)
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Logo de manhã eu liguei a câmera e andei com ela pela casa a perguntar ao Krom, ao André e á Isabela quais eram as expectativas deles com relação ao dia de hoje, o que para eles significava este dia, o que eles esperavam encontrar pelo caminho, e eles responderam, cada um, com a sua filosofia, a qual agora – um dia depois, quando consegui finalmente me sentar á frente do portátil, com a janela escancarada para a rua, sozinho, em casa – eu, jamais, conseguiria recordar, entretanto, eu repetiria esta pergunta à noite, depois do dia decorrido, com um caderno de anotações, mas, no geral, eles me responderam de forma técnica, observaram acertos e erros e disseram esperavam pelos acontecimentos, na verdade, todos esperávamos pelos acontecimentos, afinal de contas, estamos em Soure, Marajó, e aqui, as cosias têm um tempo muito próprio, mas depois eu desenvolverei mais sobre este fenômeno, pois que agora é hora de reler alguns apontamentos, atualizando-os, com estas sobredoses de complexidades, destas pelas quais somos atravessados e nas quais mergulhamos a nossa criatividade, ou seja, no seu próprio nascedouro, a incerteza.
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Nós, os artistas temos esta liberdade antropológica para viver a vida, porque a desfazemos e a desafiamos, tal qual o ser humano se re-faz e se desafia a sai próprio e tal qual cada ser humano desafia um ao outro.
Por ser o que é, diferente.
E nesta diferença, onde cada um viva a sua vida da forma que lhe apetece viver, eu disse: da forma que lhe apetece e não das formas impostas sem que ele próprio o perceba e se perceba, ou seja: onde cada ser humano interprete a vida a partir de sua própria consciência.
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Em Soure - como no Marajó e se calhar em todos os municípios paraenses e mesmo nos municípios mais pobres do país, sim, porque Marajó tem o IDH mais baixo do mundo -, todas as ações passam necessariamente pela prefeitura.
Se você quer falar com algum gestor ou líder da sociedade, é óbvio, a prefeitura é o melhor local para este contato.
Desconfio que isto ocorre em todo o mundo, este fenômeno de migração de lideranças da sociedade civil para a “institucionalidade”.
(Entretanto, há um dado que me despertou a atenção e que se refere ao ecletismo religioso do “caboco” – expressão que tomo emprestada ao caboco Varela – marajoara: em Soure, o prefeito é evangélico e o secretário de finanças, espírita.)
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E esta institucionalidade se repete em outros setores, mas, explico: não me apetece condenar o Instituto de Artes do Pará, IAP, e outras instituições do tipo, entretanto, chateia-me o fato de instituições que se pressupõem soberbas ministrarem cursos para as populações do interior do Pará, alguns dos quais, inclusive, mestres de cultura popular, cooptando-os para um saber institucional, conferindo aos mesmos certificados para que continuem a fazer o que sempre fizeram, que é transmitir conhecimentos e saberes populares para os seus descendentes, habitantes das comunidades localizadas nas periferias das periferias deste país.
Há, pois, neste caso, uma quebra e mesmo um retrocesso no paradigma do saber, primeiro porque estes processos de transmissão de conhecimentos são democráticos e respeitosos, ao contrário da passagem/imposição de saberes institucionais, que em geral é autoritária, ou seja, paradoxalmente, instituições como o IAP e outras do tipo, quando agem com a intenção de formar, acabam por usurpar os saberes, minando as formas populares de conhecimento, desrespeitando-as, porque o que norteia o princípio destas formações é um resultado certificado e não um aprendizado propriamente dito (até porque este aprendizado já se localiza na sua matriz, ou seja, nas comunidades).
Por trás do manto sagrado da formação, ocultam-se os valores e as formas eruditas de passagem do conhecimento.
Não há aqui diálogo, mas, pirataria, como disse a Edna Marajoara.
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Quem anda pelo Marajó sabe muito bem disso...
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Uma das coisas que percebi logo no primeiro dia das oficinas é que no Marajó as coisas têm um tempo próprio...
Muito próprio.
Este tempo ao qual me refiro só ocorre e se encerra num único espaço, o Marajó.
Este tempo resulta de um processo histórico de colonização e opressão, que começou com a chegada do primeiro homem branco à Região,e que persiste ainda nos dias atuais com a afirmação destes velhos valores, que se perpetuaram e se transformaram, adquirindo as requintadas formas contemporâneas de exploração.
O caboco do Marajó é ensimesmado e desconfiado exatamente por isso, porque sofreu e ainda sofre na carne e aprende com este sofrimento a se defender destes ataques e destas agressões à sua cultura.
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A poesia é para mim um crepúsculo e isto é óbvio porque algo em mim sucumbe quando a sinto.
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Há duas coisas sobre as quais ainda não aprofundamos nestas andanças marajoaras.
Uma é a bicicleta e a outra, a poesia.
Sim, porque para quem se dispõe em ir ao Marajó é necessário qualquer coisa além do sentimento de aventura.
Não bastam as águas e as baías para serem transpostas.
Não basta a vontade e o desejo de conhecer porque há algo além deste porque.
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Talvez fosse mais correto escrever um pequeno manual com as regras para se ir ao Marajó, talvez isso me trouxesse algum $, talvez as editoras se interessassem pois que o turismo é o que está a dar por estas bandas, quando o dá.
Mas não, ao contrário disso, eu prefiro bicicletas e poesias.
Sim porque os transportes no Marajó são um problema real que começa desde a saída de Belém, passando-se por duas baías, a do Guajará e a do Marajó, até que enfim cheguemos aqui.
Embora aqui possamos chegar de carro, pela balsa que sai de Icoaraci até o porto do Arapari, e embora por aqui tenham mototaxistas e taxistas, penso que para se transportar, em Soure, melhor é usar uma bicicleta, embora o mais recomendável, em períodos de chuva, seja mesmo um búfalo.
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Há mesmo quem já tenha me dito que para se ir de Soure para Cachoeira é preciso ir até Belém, ou seja, fazer uma viagem de três horas de barco, antes percorrendo trinta minutos de terra, isso quando não chove e quando as águas não estão revoltadas.
De onde necessariamente se tem de sair – com uma estrutura mínima – para chegar ao Marajó (quem quer até pode sair de outro lugar, em viagens intermináveis, em barcos pesqueiros, estes sim, ou trabalhadores pescadores ou aventureiros), há que sair de Belém.
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Os tempos mudaram, isso aqui cresceu demasiado, já são cerca de 23 mil habitantes, espalhados nas zonas urbana e rural, mas as coisas continuam as mesmas.
Soure cresceu, é verdade, do mesmo modo cresceram as suas contradições e também os trabalhos valorosos que vêm sendo realizados por abnegados amantes do Município, como a Mãe Zeneida e o artesão Ronaldo, com os quais haverei de encontrar e com os quais ainda falarei."
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© Carpinteiro de Poesia e de Cinema
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